Aos 60 anos, Sérgio Pereira é um dos últimos proprietários de locadora de vídeo na cidade
- Stephanie Ramos
- 10 de out. de 2018
- 7 min de leitura

Em frente ao Bloco B do Edifício Copan está a Video Connection, difícil de ser ignorada, pois atrai olhares curiosos dos passantes dali. Todos os dias, pontualmente às 10h30 e às 15h30, algumas pessoas enfileiram-se frente à pequena loja enquanto aguardam a visita guiada até o terraço do maior conjunto habitacional da América Latina, um dos principais projetos de Oscar Niemeyer.
Eu e a jornalista Isabel Rocha passamos apressadas pela entrada do Copan e viramos o passo à esquerda, direto para a locadora de vídeo. Já havíamos estado ali outras duas vezes. A primeira para pegar pôsteres de filmes e usar como decoração. Logo de cara não resistimos em fazer inúmeras perguntas curiosas ao funcionário no balcão; na segunda visita já estávamos marcando a entrevista.
O ambiente parecia o mesmo desde nossas últimas idas. Desgastadas prateleiras creme ocupadas por um oceano de títulos e mais títulos divididos por pequenas placas indicando o gênero. Há mais do que se pode contar por trás de um balcão de madeira e vidro.
Ele não estava lá. Miramos os filmes do balcão na esperança de que ele nos visse pelas câmeras de segurança. Após alguns minutos de espera ouvimos barulhos vindo das escadas que levavam a algum dos dois andares acima. De lá desceu um homem grisalho de polo azul, com o último botão da blusa desabotoado e o sorriso simpático que nos recebeu docemente, assim como em nossas outras visitas. Era Sérgio Pereira, sujeito que aos 60 anos rege sozinho a Vídeo Connection, uma das últimas sobreviventes locadoras de filmes na cidade de São Paulo.

“Posso te ajudar? Você está procurando alguma coisa específica?”, sorriu gentilmente Sérgio. Quando explicamos que nosso propósito era fazer a matéria, o sorriso não se afrouxou - o homem manteve o mesmo nível de satisfação. “Vocês já não vieram aqui?” ele pergunta curioso tentando lembrar como reconheceu os nossos rostos. Enquanto se ajeita atrás do balcão, conta orgulhoso que naquele mesmo dia uma equipe de filmagem foi ao seu estabelecimento para fazer um documentário sobre a saudade das locadoras.
Quando começou a contar a história da locadora olhou para cima, como quem tenta calcular a grande passagem do tempo, mas sabia na ponta da língua o ano específico da abertura do local: 1985. Antes, Sérgio trabalhava em uma empresa multinacional, até um amigo lhe fazer um convite: “Você quer abrir uma locadora comigo?”. A locadora já existia, mas o sócio estava saindo e o amigo achou que Sérgio era a escolha ideal para substituir a vaga. Ele topou e pediu a demissão em 84. Em fevereiro de 85, a locadora ganhou um novo nome e uma nova sociedade.
No começo, a Video Connection não era localizada no Copan, e sim na Rua da Consolação, “Número 335. Era um prédio de sete andares. 347, desculpa, 335 é do lado”. Trabalhavam no quinto andar, mas em pouco tempo também se apropriaram do sexto andar para abrir uma distribuidora de filmes. Os dois começaram a abrir locadoras no Brasil inteiro com a primeira revendedora de filmes, a Montevideo. Anunciavam em revistas, e de qualquer canto do Brasil vinham então pedidos de acessórios, etiquetas, capinhas e filmes.
Em 1986, Sergio transferiu a locadora da Consolação para o Copan, o lar da Video Connection há 32 anos. Queremos então saber, “por que o Copan?". A resposta vem rapidamente e seus olhos pareciam relembrar com deslumbre anos dourados de um dos edifícios mais queridos da cidade de São Paulo, “Isso aqui é uma cidade. Você conhece o Copan? São 5.000 moradores, 1.106 apartamentos. É um negócio… enorme”.

Naquela época, o acervo contava com 3.000 filmes, que segundo Sérgio era pouco. Hoje só de DVDS são 18.000 títulos, junto com os 8.000 VHS, já que ele se desfez de 20.000 títulos - mas por um bom motivo: foram doados a moradores de rua do centro da cidade.
Desde que chegamos o monitor no balcão trabalhava incansavelmente. Sérgio nos explicou que estava passando um VHS de primeira comunhão para DVD, um trabalho frequente já que muitas memórias estão gravadas em fitas, mas nem todas as casas ainda possuem um aparelho que as leia. Nesta hora apareceu uma cliente. De vestido vinho, combinando com o batom escuro, que por sua vez combinava com a alça gasta de sutiã que aparecia levemente.
Sérgio interrompe a conversa e sorri para ela: “Tudo bom?”. “Tudo, vim fazer mais três Babel”, reclamou a senhora. Sua voz estridente assustou o locador, por mais que ele já a conhecesse. Suas cópias do último filme da trilogia do Caos de Iñarritu em DVD eram para uma banca de TCC. “O senhor passa umas três e aí acabou, viu? Eu não aguento mais. Eu dei minha palavra que vinha, mas acho que o senhor não achou que eu chegaria tão tarde”, explicou. Apesar de chamá-lo de “senhor”, a mulher de vestido vinho parecia ser muito mais velha que Sérgio. “Eu falei: será que ela esqueceu? Pensei que você tinha se esquecido!”, indagou Sérgio enquanto marcava o preço na máquina de cartão. Ele rasgou levemente a nota fiscal da máquina e entregou à senhora com um sorriso. “Agora eu não volto mais! Chega!”, guinchou a mulher ao sair. Sérgio sorriu meio de canto. Apesar da satisfação da cliente, “não volto mais” não eram palavras que ele gostaria de ouvir.

Netflix ele não assiste, TV a cabo passa longe. Afinal qual é a lógica de pagar para assistir filmes que ele já tem? Mas então fazemos a pergunta mais aguardada de nossa visita, olhando-o atentamente para a resposta: Qual é o segredo de conseguir manter uma locadora funcionando na era de serviços de streaming como Netflix e Spotify? Ele acha graça da nossa pergunta, diz que não existe segredo, mencionando a última palavra como se fosse uma palavra mágica; um feitiço. Sérgio conta que as grandes redes já falecidas, como a Blockbuster e a 2001 compravam grandes quantidades do mesmo filme para dar conta da demanda, enquanto ele comprava no máximo duas unidades, para criar ansiedade no espectador e não acabar com DVDs acumulados.
Tenta pensar então em outro motivo para justificar como em 2017, sua pequena locadora é sua única fonte de renda mensal, lucrando até R$6.000 com uma média de 750 locações por mês. Os clientes vêm de toda parte de São Paulo, e vendo que um ou outro teve uma dificuldade a mais de chegar ao Bloco B do Copan devido à distância, Sérgio acaba concedendo um tempo maior para que assista os DVDs locados.
Antes tinha ajuda da filha Daniela, formada em psicologia, mas hoje não mais. Daniela arranjou um trabalho na sua área e entregou o controle total da Video Connection ao seu pai, que fala de sua filha como um troféu, “Ela é cinéfila de verdade” diz negando o título para si, embora um de seus orgulhos seja uma prateleira quase na entrada onde organizou alguns filmes por seus grandes diretores de cinema, onde se lê Woody Allen, Andrei Tarkovsky, Brian de Palma, entre outros.

"Tem muita gente que volta aqui e acaba sendo cliente por causa disso, do atendimento, os funcionários eram bem preparados para dar um atendimento prioritário. Conhecer filme é um item importante", explica Sérgio. Antes de escolher seus funcionários, costumava perguntar os filmes favoritos, que filmes indicaria para um cliente e se conhecia os títulos mais famosos.

Mais uma vez fomos interrompidos por um cliente, um morador do Copan de mocassim e bermudas brancas e a barba branca cingindo seu rosto. "Ele é cineasta", apresentou Sérgio, com um vislumbre inegável. Lua é o nome do seu bom companheiro. "Lua sem outro L", brincou essa e outras vezes. "Eu passo aqui, converso com ele, olho os filmes. Eu não alugo porque não tenho onde passar, inclusive. Eu não tenho onde passar porque não tenho televisão. E eu não tenho televisão porque se eu tivesse, eu não sairia da frente dela. Então, assisto aqui de pé que é bem cômodo", justificou Lua aos risos hipnotizado pela pequena televisão, presa em um lugar alto da parede que dá para o corredor do prédio. "Vou por uns bancos aqui", brincou Sérgio. "E outra, ele não é um cara de videoteca. Ele é aficionado de cinema, então ele é um papo… uma conversa. É outra coisa!", elogiou sinceramente. Um diretor e um locador: bons amigos. Quem diria?

Aventuramo-nos pelos andares de cima enquanto Sérgio e Lua mantinham sua conversa cotidiana. Repleto de pornôs e um confortável sofá para assisti-los, o segundo aparenta esquecimento. Antigamente os clientes circulavam por todos os andares, mas com a diminuição da movimentação, Sérgio transferiu os menos acessados para lá. "Eu coloquei lá em cima porque o pornô morreu. Pornô teve a época dele, mas ele morreu. O pessoal não aluga mais. O que sai de vez em quando é o pornô gay, porque aqui nessa região tem um público gay muito forte, então o hétero acaba ficando para alguns poucos", relata o locador.

A conversa não nos deixou fugir da pergunta mais curiosa: “Você tem um filme favorito?” perguntamos ansiosas pela resposta. A expressão relaxou e a vértice do canto de seus lábios exprimiu mais um sorriso. “O meu é A Partida. É um filme japonês, ele ganhou o Oscar em 2009 de melhor filme estrangeiro e é um filme que fala de uma situação de um cara transformar uma profissão, uma coisa que ninguém quer em uma coisa muito bonita, delicada, sabe? Ele vai ser um agente funerário, você já imaginou essa coisa? Uma coisa né… impressionante. E ele transforma a coisa, porque as pessoas até repugnam ele, tem nojo, a mulher dele tem nojo dele quando descobre que ele tá trabalhando com isso, ele nem fala nada em casa. Mas depois ela vê como é o trabalho dele, ela vê que é uma coisa muito… humilde, muito sublime, né? Muito bonita. E tem a relação dele com o pai, que tinha largado a família dele quando ele era bem pequenininho, depois ele vai, é… Encontrar o pai em uma situação ruim. Pô, é muito bonito esse filme, vale a pena, é um filme que mexe com a gente”.
Talvez a identificação de Sérgio seja pelos preconceitos que ele mesmo sofre com a locadora. Daigo Kobayashi, o agente funerário de seu filme favorito, também sofreu alguns tabus sociais por seu trabalho. “Muita gente dá risada, goza. ‘Nossa, imagina! Uma locadora! Com tanto filme que tem na televisão ainda tem esse cara com uma locadora’”, expressou Sérgio, ainda com o sorriso do começo da entrevista, mas que havia perdido um pouco o brilho. Durante nossa uma hora de conversa, foram três clientes: um perguntou e saiu; uma veio buscar seus DVDs; e o último, amigo de longa data, veio visitar. É um trabalho realmente solitário.
Só ao final do filme Kobayashi aprende a importância, beleza e dignidade de seu trabalho. Sérgio, por sua vez, já sabe disso - o sorriso no seu rosto não nega.
Texto e imagens: Stephanie Ramos e Isabel Rocha
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